4. diálogo que ninguém testemunhou

— daqui você não passa, disse o guarda de preto junto ao portão.
— propriedade privada? como faço para dar a volta?
— você não entendeu. daqui para frente não dá pra ir... aqui é o seu limite. volte, conte suas histórias, suas aventuras, até aqui.
— mas eu quero ir depois daquelas montanhas, lá adiante.
— não há nenhuma montanha lá adiante... dê meia-volta e esqueça essa conversa.
— mas eu estou vendo as montanhas, azuladas. é só se virar e você vai poder vê-las também.
— ao contrário de curiosos e desocupados como você, eu tento não ficar procurando unicórnios, miragens e montanhas onde não há coisa alguma. volte pra casa, ou vá para a floresta e lute contra leões. as mulheres adoram isso. esqueça as montanhas que não existem.

havia um ruído muito forte que vinha do lado das montanhas, e um vento que quase nos arrastava. o guarda olhava fixamente para mim e insistia em proibir-me a passagem. estava anoitecendo e começando a ficar muito frio. o guarda foi para a sua pequena cabana, sempre de costas para as montanhas e me olhando. não parecia que iria me oferecer abrigo para passar a noite e resolvi armar a minha barraca ali perto.

— você acha que alguém voltou dali?
— você deixou alguém passar?
— não, mas as pessoas pulam a cerca e correm... não posso fazer nada, não vou correr até lá atrás delas. mas ninguém nunca voltou. é isso que você quer? nunca mais voltar?
— qual seria o problema de seguir por esse caminho?! se é só uma montanha e nem é das mais altas...
— você sabe tão bem quanto eu... não há nada depois daquelas montanhas, mas o vazio. o buraco do vácuo, das estrelas. é a borda do planeta...
— você tá me dizendo que a terra é plana, e que depois daquelas montanhas fica a fronteira... onde os mares se derramam no vazio?
— entenda como quiser. não posso te impedir. e logo estarei dormindo.... faz frio aqui.

o frio aumentava e o ruído não cessava. de repente achei que não seria justo pular aquela cerca e correr. ele nunca me seguirira... ficaria na cabana, imaginando meu destino, como o de tantos outros que devem povoar sua memória. fiquei na barraca tentando adormecer, em vão.

— há uma colônia, depois das montanhas...
— então você admite que há montanhas...
— há uma colônia de fugitivos, de gente que desistiu do mundo, da sociedade e resolveu viver a beira do abismo do mundo. é uma pequena vila. às vezes um deles, nunca o mesmo, vem até aqui, trazer cartas. eu faço com que cheguem ao destino... vejo quando chegam e quando vão embora, mas nunca olho para as montanhas.
— partirei pela manhã. um dia você me verá chegar aqui, com cartas nas mãos...
— vou te reconhecer, nunca esqueço um desses rostos.

na manhã seguinte pulei, ainda muito cedo, a cerca. caminhei, não precisava correr, em direção às montanhas azuladas, em direção ao forte ruído. olhei para o guarda que não ousava me acompanhar com o olhar. aquela cabana era como o último farol antes do fim do mundo, o último marco da civilização que acredita que a terra é redonda.

3. na aula de ciências

a terra é plana e vasta. viajando-se por ela indefinidamente pode-se voltar ao mesmo ponto de onde se partiu como se de fato o estivesse alcançando pelo outro lado. sabemos que a circunavegação é uma ilusão criada por certas anomalias magnéticas e por tudo que nos ensinaram até hoje sobre a terra ser redonda. há, ao leste, uma cordilheira que ninguém, jamais, ultrapassou. dizem que vem com o vento, das bandas de lá, um rumor que não se ouve vindo das bandas de cá. é, dizem, o rumor das estrelas.

o mar marca apenas uma parte da fronteira da terra plana. não cai no abismo como dizem as lendas, mas é contido pela ação da atmosfera, como num aquário. a atmosfera é uma redoma e abrange uma área muito maior do que os cálculos imaginam, porque os cálculos estão baseados na idéia errada de que a terra é redonda. as estrelas estão dentro da atmosfera e poderíamos alcançá-las com semanas de viagem. essas primeiras estrelas são as estrelas de orientação e são muito pequenas. para além da atmosfera ficam as outras estrelas e os planetas. alguns são redondos. há ainda estrelas de orientação que escapam da atmosfera e não sabemos mais delas.

os moradores de fora da redoma atmosféricas nos visitam e sabem que a terra é plana. há várias referências a isso esculpidas em rochas junto a lagos gelados e pintadas em cavernas, junto a antigos desenhos de feras e rituais.às vezes num beco de uma grande metrópole podemos encontrar mensagens cifradas dos seguidores da terra plana. são alertas. gente como nós. já sabem de tudo e traçaram um plano, que logo virá a tona. vai dizer que vocês nunca viram esses desenhos?

2. dos primeiros registros

os antigos navegadores achavam que a terra era plana. os antigos astrônomos achavam que a terra era plana. os antigos sábios da atlântida achavam que a terra era plana, e que o mar despencava no triste abismo estelar. a própria atlântida despencou no abismo. para sempre navios vagavam em círculos sem acreditar nos pólos, pois para todos a terra era plana. havia um consenso, para o bem de todos, que a terra era plana e que plana deveria permanecer. para cada criança a terra era plana e para cada homem ou mulher a terra era plana. ninguém se aventuraria para além de suas esquecidas fronteiras. além de esquecidas e distantes, essas eram fronteiras perigosas, inexploradas, pois eram as fronteiras da terraplana com o resto sem fim do universo.

1. por onde começar, quando começar é o que menos importa?

por onde você quer que eu comece, juliette? começar pelo começo seria uma perda de tempo, porque já é tarde demais....

não eram poucos os que sabiam da carta de gagarin. muitos eram os que negavam sua existência. havia ainda os que negavam mesmo a existência de gagarin. objeto de disputas e guerras, a carta deve estar oculta em alguma parte deste mundo, nos cofres milionários de um banco estrangeiro, onde algum milionário a contempla a portas cerradas, com os olhos cheios de lágrimas.

gagarin manteve-se impávido, mentiu por anos, porque não queria destruir o mundo. mas nenhum homem fica calado por tanto tempo... então escreveu a carta, porque uma carta deixa margem para dúvidas.